domingo, 20 de fevereiro de 2011

"O carnaval Precisa de um Xerife."


A palavra Carnaval origina-se da expressão ‘adeus à carne'' ou ‘carne vale'', denominação dada às festas regidas pelo ano lunar do Cristianismo na Idade Média. O compositor carnavalesco tem a grande responsabilidade de divertir e ensinar ao mesmo tempo, pois através do samba enredo das escolas fica mais fácil conhecer os traços culturais de cada região do País. Em entrevista ao Diário, o compositor de samba e professor de História Wellington Kirmeliene, de Santo André, fala sobre suas paixões e analisa os carnavais do Rio de Janeiro, da Capital e critica a "mentalidade vexatória" dos presidentes das agremiações de Santo André.

DIÁRIO - Como surgiu sua grande paixão pelo samba? KIRMELIENE - Desde pequeno tive contato com o Carnaval e os sambas. Inicialmente era uma relação de raiva, pois lembro que desejava ver desenhos animados na TV, mas, ao ligar o televisor nos dias de folia, não havia nada além de desfile das escolas do Rio de Janeiro. Depois veio o contato com o samba de enredo em vinhetas, que cravejavam a programação pré-carnavalesca. A memória guardou três trechos musicais: um sobre os Trapalhões (Unidos do Cabuçu 1988), um sobre o Marquês de Sapucaí (Imperatriz Leopoldinense 1993) e outro sobre o sonho (Mocidade Independente de Padre Miguel 1992). Estes foram os primeiros contatos, o estopim da paixão. Por volta de 1997, ganhou forma e tomou conta de mim. Procurava CDs de outros anos, depois comecei a caçar LPs. Daí, para virar compositor, foi um pulo.

DIÁRIO - Como professor de História, você exercita seu lado pesquisador quando compõe. É mais prazeroso ou desgastante? KIRMELIENE - O processo de composição em 90% das vezes é prazeroso, pois permite série de momentos de aprendizagem e enriquecimento. Aprendo novas histórias, outros caminhos para compor, vou refinando a forma de criar a poesia e deixo menos desafinados os meus ouvidos. O problema é quando se chega aos 10% nada prazerosos. Um artista que não tem liberdade para criar ou que não se encanta por sua musa está fadado ao fracasso. É cruel ter de criar poesia em cima de textos sem pé nem cabeça, que ousam chamar de ‘enredo'', mas que na verdade trata-se de uma pesquisa ‘copiou colou'' de Wikipédia, que nem meus alunos de sexto ano (antiga quinta série) ousam me apresentar!

DIÁRIO - É possível fazer uma leitura satisfatória do contexto histórico através dos carnavais passados? Por quê? KIRMELIENE - Existem momentos da História do Brasil em que toda produção cultural esteve muito mais entranhada com a realidade e, por isso, permite uma leitura, pesquisa e interpretação melhores. Os exemplos são inúmeros. Os desfiles dos blocos, cordões e grandes sociedades no começo do século 20 no Rio de Janeiro revelam o processo de segregação social e racial que se desenvolvia disfarçado de sanitarismo. Os sambas de enredo durante os anos da Ditadura Militar ora adulavam, ora combatiam o regime vigente. Os enredos do Carnaval de 1988 do Grupo Especial do Rio de Janeiro adotaram na totalidade ou parcialmente a temática negra em função da comemoração dos 100 anos da Lei Áurea que se aproximava.

DIÁRIO - Quais são suas influências culturais? KIRMELIENE - Meus parceiros e amigos de samba brincam que sou branco por acidente. A minha influência mais forte é a de origem africana. Sou amante dos tambores, atabaques e mitos que vieram da África. Adoro as histórias dos reis, das resistências. Não conheço um ascendente meu que fosse negro. Foi frequentando a umbanda e ouvindo os tambores tocando que se iniciou esse despertar da ‘africanidade''.

DIÁRIO - Fale dos seus trabalhos e quais foram premiados. Há um reconhecimento justo nesta área? KIRMELIENE - A minha história como compositor de samba de enredo começou oficialmente em 2001. Em 2011 completo dez anos nesta brincadeira. Já perdi muito samba bom e, claro, perdi muito samba ruim. Quando olho tudo o que já compus, chego à conclusão de que fui extremista: ou fiz obras que considero sublimes ou criei monstros que acho medonhos. Dos que perdi, nada superou a dor da derrota injusta (e vou morrer pensando assim) das eliminatórias para o Carnaval de 2005 da Mocidade Alegre aqui de São Paulo. O enredo era sobre a Clara Nunes e naquele ano buscava o tricampeonato de samba-enredo lá. A obra era linda. Mesmo assim foi derrubada na semifinal. A justiça veio na apuração, quando a escola perdeu pontos preciosos nesse quesito. Dos que ganhei e foram premiados destaco dois: o samba de enredo de 2004 da Mocidade Alegre de São Paulo e o do mesmo ano no Bambas da Orgia de Porto Alegre. O primeiro ajudou a escola a levantar o caneco de campeã após 24 anos de fila. O samba foi escolhido o melhor do Carnaval dos 450 anos de São Paulo. A festa de premiação no Tom Brasil foi inesquecível. No caso do Bambas da Orgia, o samba de enredo também ajudou a levar a escola ao título e também foi escolhido o melhor do Carnaval de Porto Alegre. O reconhecimento é muito mais pessoal do que financeiro. Não se valoriza compositor nem mesmo dentro das escolas de samba, quanto mais na mídia. O compositor é ofuscado pela própria obra.

DIÁRIO - O professor/pesquisador e o compositor/poeta se completam? KIRMELIENE - E como se completam! Quando crio artigos para utilizar em aulas, tento sempre colocar certo feitiço nas palavras, nas letras. Os alunos ficam com aquele olhar contemplativo, reflexivo e imaginativo. Não adianta tapar o sol com a peneira: se o historiador não despertar a poesia das letras, nenhum aluno irá suportar ler um material didático.

DIÁRIO - Quais são seus compositores e intérpretes favoritos? KIRMELIENE - Sempre gostei muito do que Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte criaram juntos. O mesmo vale para João Nogueira. Se o campo for samba de enredo, sempre gostei da poesia forte de Gelson Vidal, já falecido, e da poesia simples, mas bela, de Djalma Falcão. Também sou muito fã dos meus parceiros de samba. Em relação a intérpretes, o leque é enorme. Sempre achei Clara Nunes a voz mais linda que já ouvi dentre as mulheres. Acho incrível como Ney Matogrosso interpreta as canções. Se o papo for samba de enredo, a lista também é gigante. Sempre gostei de Aroldo Melodia (ex-intérprete da União da Ilha do Governador, já falecido), Neguinho da Beija-Flor, Rico Medeiros (ex-Viradouro e ex-Salgueiro), Luizito (Mangueira) e, claro, o grande Carlos Medina (ex-intérprete de escolas de Porto Alegre). Da nova geração, gosto muito do Gilsinho da Portela, do Ito Melodia da União da Ilha e de uma promessa aqui de São Paulo que é Juninho Berin. Ele é um dos intérpretes da Mancha Verde.

DIÁRIO - Carnaval carioca e carnaval paulista, qual a diferença mais gritante? KIRMELIENE - Lembro até hoje do carnavalesco Milton Cunha, que já trabalhou nos dois eixos, dizendo que em São Paulo faltava quadril. Não quero parecer racista, mas existem escolas em São Paulo nas quais quase 90% dos componentes são brancos. Aí você começa a sentir falta de quadril, de garra, de vibração e de, fundamentalmente, raiz. Por mais mitológica que pareça ser a ideia do Carnaval sendo fruto dos negros escravos, o samba surgiu na senzala. Não é possível futuro sem passado e nem frutos novos sem raiz. Atualmente, a diferença maior repousa na estrutura dos dois carnavais. Enquanto no carioca há a Cidade do Samba, que facilita o acesso a inúmeros recursos para a confecção dos desfiles das escolas, aqui em São Paulo ainda se tem escolas do Grupo Especial criando alegorias sob viadutos e extremamente suscetíveis às enchentes. No entanto, nosso complexo cultural, a estrutura circulante ao sambódromo é insuperável. No Rio de Janeiro, os carros ainda têm que desviar de fios e pontilhões, tanto para entrar na Sapucaí quanto para sair. Isto tudo sem falar na questão do profissionalismo carioca e do certo amadorismo que ainda reina em São Paulo. O carioca vive a cultura carnavalesca durante todo o ano. Tornou-se ciência acadêmica com cursos de graduação e pós-graduação na área. Já em São Paulo, uma pequena parcela vive o Carnaval o ano inteiro.

DIÁRIO - O que Santo André precisa aprimorar em se tratando de festa carnavalesca? KIRMELIENE - Tudo! Santo André é uma cidade grande. Mas, quando se fala em Carnaval, parece uma cidade de Interior. Não há estrutura para nada. Os desfiles ocorrem em locais sem planejamento. As escolas de samba, geralmente, apresentam pouquíssimas atividades sociais ou culturais entre os carnavais, limitando-se em eliminatórias de samba de enredo, ensaios e escolhas de rainhas de bateria. Você vai assistir a um desfile e não tem onde parar o carro. Deixa na rua e não sabe se voltará a vê-lo. A verba para as agremiações montarem seus desfiles é imoral. As bandas que sempre foram uma referência na cidade acabaram sendo cobertas pela poeira do tempo. A divulgação carnavalesca é uma vergonha. A mentalidade de carnavalescos e, principalmente, dos presidentes das escolas de samba, é vexatória. Cada um dos mandatários só pensa em tirar vantagem para sua agremiação. Pensam em status e contratam carnavalescos do Rio de Janeiro, de São Paulo que, raras vezes, dão resultado. É muito dinheiro gasto de forma errada. Isto quando algum presidente não some com o dinheiro da verba e a escola fica a ver navios. Este tipo de fato já ocorreu aqui algumas vezes. No quesito Carnaval, Santo André é uma cidade do faroeste. Procura-se um xerife!

DIÁRIO - Já dizia o poeta que somos o ‘túmulo do samba''. Esta afirmação procede? KIRMELIENE - O Brasil é berço e túmulo do samba. Não é só em São Paulo que existem ‘coveiros'' prontos a enterrar o samba e não é só no Rio de Janeiro que estão as ‘parteiras'' aptas a trazer sambas à luz. Há samba bom e novo nascendo em todo lugar do País. Nos botecos, nos terreiros, nas quadras das escolas de samba, nas rodas de amigos depois daquele futebol de fim de semana. A mídia tem o poder de sacralizar e diabolizar qualquer coisa. No caso das escolas de samba, quando elas escolhem um samba ruim, frio, sem lirismo, que repete a mesma melodia há dois ou três carnavais, isto se dá pelo fato de temerem ousar e perder pontos no dia do desfile. Os jurados da avenida, por sua vez, acabam dando notas e justificando de forma muito discrepante. A mesmice dá uma falsa sensação de segurança. O ‘túmulo do samba'' não é uma cidade ou um Estado. É a mediocridade de quem acha belas a mesmice e a pobreza antipoética e anti-lírica.

"Malandro Velho..."


"Músico - poeta", palavra que possui vários sinônimos de acordo com o país. Os franceses chamam troubadours (trovadores), os alemães minnesang, os escandinavos skalds, os ingleses Scops, os irlandeses chamam bards (bardos), na Idade Média eram chamados menestréis. Assim é Arnaldo Dias Baptista, um menestrel moderno, suas canções derramam romantismo e poesia, mas também contestação e críticas sociais, existencialismo e questionamentos. Quem sente sua poesia percebe a nostalgia de um passado não vivido, a efervescência e rebeldia do rock contemporâneo e o futurismo de alguém a frente de seu tempo. Arnaldo é um artista completo.

A ironia trágica e contemplativa sentida em suas composições é herança de sua bagagem cultural?

ARNALDO BAPTISTA - Não; pois meus dois irmãos discordam de mim (musicalmente).

Você possui a rebeldia, a irreverência e a inocência do rock, mas também toca piano maravilhosamente e faz derramar em seus trabalhos uma suave nostalgia clássica. Explique esta mistura de elementos.

BAPTISTA - Meu lado pianístico é completado pelo som, que com amplificadores valvulados, flue suavemente.

Quais são suas influências literárias e musicais?

BAPTISTA - Literárias: Alexandre Dumas, Edgar Rice Burroughs, Monteiro Lobato e Pierre Closterman. Musicais: Bach, Debussy, West, Bruce and Laing, Beatles, Queen e Yes.

Você guarda a mesma convicção de futuro, a mesma esperança que demonstra nos versos "... Vivo a pensar pra frente/Quando não mais houver cidade/Eu vou te achar/Com mil anos de idade..."?

BAPTISTA - Entreter, com o prazer intelectual, conduz minha vida (quem Esphera sempre alcança).

Segundo Mikhail Bakhtin (teórico literário), o poeta enxerga o mundo através de si e age como um catalisador, que absorve esta visão reinventando a realidade ao seu redor em um processo criativo constante. É assim com você?

BAPTISTA - Em coma senti a imortalidade de quem foi capaz de transformar: a realidade. (Einstein, Pasteur, Cleópatra, Jesus, Allah e Buda)

Sinto traços de vários períodos e influências em sua poesia. Seria resultado da antropofagia do movimento modernista?

BAPTISTA - Quando o talento está lento, fico lendo antropófagos.

Pode-se dizer que o homem Arnaldo está descrito em cada letra, em cada acorde, em cada ‘navegar de novo''?

BAPTISTA - Fico contente com meu: tente (ser). A mente sente a semente e não mente.

Obrigada pela atenção, pela contribuição cultural que você dá ao mundo.

BAPTISTA - O meu sonho tocando em Londres era deixar todos estupefatos, com a qualidade do meu som e meus deuses nos instrumentos: Jack Bruce, Tony Kaye, Nigel Olson e Jimi Page. Mas não deu!

Irreverência e poesia além da visão

Luzdalva Silva Magi
Especial para o Diário

"Eu sou a mosca da sopa/ E o dente do tubarão/ Eu sou os olhos do cego/ E a cegueira da visão". Abro este texto com a estrofe da música Gita de Raul Seixas e Paulo Coelho, para descrever um poeta de espírito irreverente, de traço rebelde e, como dizia Walter Franco, que mantém "a espinha ereta e o coração tranquilo". Assim é Glauco Mattoso e seu humor cáustico, sua inteligência cortante e, sem rodeios, aquele que ilustra e canta a vida com versos pontiagudos e traços assimétricos.

Alguns o chamam de poeta escatológico, definição lógica posto que ele faz com que brote da imundície e fealdade pura beleza artística, alquimia difícil esta de transformar o lixo e a demência em poesia. Incomodar, questionar, enxergar além da cortina de alienação que a sociedade oferece é o objetivo daquilo que ele produz. Pedro José Ferreira da Silva nasceu em São Paulo, em 1951. A perda progressiva da visão originou o pseudônimo glaucomatoso. Em 1995 perdeu totalmente a visão. Sua contribuição para a contracultura brasileira é grande e importante.

Fazer arte é enxergar um pouco além ou apenas sentir com enorme intensidade as coisas?
GLAUCO MATTOSO - Para o artista que tem seus cinco sentidos, é a quinta-essência da sensibilidade, a intensidade mais requintada. Para o artista cego, é a visão transcendental, o sexto sentido, talvez o 666º sentido, dependendo do pacto que o bruxo faça com a arte, como no caso dos blueseiros.

Nas entrelinhas da irreverência e da característica underground é possível perceber certa nostalgia romântica em seus poemas, isso procede ou é minha forma de leitura?
MATTOSO - Procede. E a nostalgia não é só romântica. Cronologicamente falando, o meu caso de pós-modernidade vem a ser transgressivo justamente porque remonta ao oitocentismo, com todas as implicações estilísticas da época, sejam elas românticas, parnasianas, simbolistas ou naturalistas. Acredito que reside precisamente no contraste entre o terceiro milênio e a Belle Époque o paradoxo barroco, ou barroquismo, da minha arte underground.

O material poético vinculado à miséria e ao abandono continua crescendo nas esquinas, não só dos centros urbanos, mas também em cidades pequenas. A banalização afeta a inspiração?
MATTOSO - Pode afetar, mas afeta positivamente, no sentido de oferecer constante estímulo à criação e à criatividade. Quanto maior a abundância de matéria-prima em termos de ‘desumanismo'', maior a quantidade de sonetos que produzo e maior o desafio de criar sempre algo que represente variação dentro do mesmo tema miserável e violento.

Em épocas de Pânico na TV e CQC, humor de terno travestido em denúncia social, faz falta o Pasquim?
MATTOSO - Não vejo tanta distância entre aquela imprensa nanica e a mídia atual, exceto em termos tecnológicos. No conteúdo, em termos de crítica de costumes, esses programas televisivos e o tabloidismo satírico pouco diferem. O que imortalizou a chamada ‘resistência cultural'', ou antes, contracultural, foi o fato de ter combatido uma ditadura militar, comum na fase da Guerra Fria, mas hoje a ditadura é econômica e globalizante, e a única forma de criticá-la é comunicar através das mídias atuais e da linguagem do momento. Isso não tira o mérito do poeta que milite, quixotescamente, como franco-atirador da sátira.

O fim da ditadura podou a criatividade de alguns?
MATTOSO - Isso é perceptível, principalmente nos geniais letristas, como Chico Buarque, e nos literatos mais presos ao engajamento esquerdizante. No caso da crítica de costumes, cuja tradição é mais ampla no tempo e no espaço, os intervalos entre os sucessivos ciclos ditatoriais até realçam e evidenciam o papel combativo da arte.

A ‘mordaça'' é necessária para que se ouçam os gemidos ou o sofrimento e a repressão são matérias-primas da criatividade humana?
MATTOSO - De maneira geral, o sofrimento e as carências humanas sempre serão ingredientes para a criação artística. No meu caso, o sofrimento acentuado pela cegueira aguça a percepção sadomasoquista no tratamento temático das questões mais universais. Paradoxalmente falando, eu diria que até prefiro que haja mais censura para que eu possa transgredí-la e desafiá-la mais frequentemente. Como diz o ditado, o proibido aguça o dente.

Em épocas de ‘extrema liberdade'' talvez tenha nascido um grande sentimento de inércia, o que você pensa sobre isto?
MATTOSO - Essa sensação de liberdade é ilusória. Vivemos um período de permissividade, impunidade e banalização da violência, mas isso, ao invés de libertar, aprisiona a gente, nos cerca de insegurança e de paranoia. Cada um reage a isso como pode. A maioria reage se alienando, daí a aparente inércia. Já o artista rebelde reage criando compulsivamente, como no caso dos meus sonetos. Tudo não passa de sintomatologia psicótica, já que somos todos um bando de loucos neste imenso manicômio planetário.

O que acha da geração beat, Kerouac, Ginsberg, Burroughs...Você foi influenciado por eles?
MATTOSO - O que tenho em comum com o coloquialismo deles é o mesmo que tenho em comum com o informalismo da nossa poesia marginal: a irreverência vocabular e sintática, a contemporaneidade da linguagem. Mas minha linhagem mais consanguínea é a dos malditos franceses (Rimbaud, Verlaine, Baudelaire, Apollinaire) e a dos fesceninos italolusitanos (Aretino, Belli, Madragoa, Bocage), resalvando que todos, beatniks, hippies, punks ou malditos, temos em comum a rebeldia do guerrilheiro, a teimosia do pecador, a alegria do palhaço ou a cantoria do repentista.

Bukowski, J. D. Salinger, Wilde e Augusto dos Anjos mudaram conceitos, você concorda? Por quê?
MATTOSO - Concordo, mas acho que nenhum conceito é tão universal que mereça mudanças universais, ou seja, cada um adota ou reformula conceitos de acordo (ou desacordo) com sua história pessoal e seu meio. A mim marcou menos o que foi mudado por Wilde ou Augusto dos Anjos, que o que foi mudado (ou reafirmado) por Sade, Masoch, Genet, Orwell e Burgess, por exemplo.

Grande parte dos seus entrevistadores tem fixação por sua vida particular, isso não te deixa irritado?
MATTOSO - Não, pela simples razão de que entendo ter a obra uma relação direta com a biografia de um autor. Quando o próprio autor insiste em se autobiografar em prosa e verso, como no meu caso, nada mais lógico que atrair a curiosidade do leitor ou do entrevistador sobre a verossimilhança dos detalhes mais podres que envolvem o meu passado.

Quadrinho no Brasil não é valorizado, seria cultural esta postura?
MATTOSO - Também lá fora os quadrinhos não eram (e nem sempre são) devidamente valorizados. Aqui isso começa a mudar, mas temos que dar o desconto da habitual defasagem que nos atrasa em tudo. Hoje estão praticamente canonizados tanto um Mauricio ou um Ziraldo quanto um Angeli, um Glauco, um Marcatti ou um Mutarelli. Mais que isso, seria exigir demais num País onde ainda falta resgatar a importância de poetas como Emilio de Menezes ou Luiz Delphino.

Gêneses do Robert Crumb, The Lost Girls do Alan Moore são trabalhos fenomenais e bastante ácidos. Falando nisso, o que você acha de nomes como Crumb, Moore, Stan Lee, Moebius e tantos outros?
MATTOSO - Aqui vale o que falei acerca de Wilde ou Bukowski: fui mais impressionado por outros nomes, como Pichard, Crepax e Tom of Finland, mas não deixo de cultuar os citados. Apenas acho que, tal como na literatura, temos que começar a dar igual valor aos santos de casa, como Lourenço Mutarelli, que está no mesmo patamar de um Crepax.

Penso que os desenhistas de hoje são os pintores de outrora. Alguns trabalhos resgatam Renoir, Van Gogh, Picasso, Dali, Rafael... Você acha exagerada esta comparação?
MATTOSO - Não, na mesma medida em que os letristas do rock atual são os compositores operísticos de outrora, como no caso de Townshend em relação a Rossini, o que vale para os cineastas e roteiristas em relação aos dramaturgos clássicos. O importante é não perder de vista que se pode continuar criando, a qualquer tempo, tanto na pintura como no cartum, no rock como na ópera. Nenhuma arte e nenhum gênero perde a validade só porque a tecnologia avança ou porque o computador disputa logar com o livro. Sempre haverá quem toque chorinho ou jazz à moda tradicional, e sempre haverá público para o cinema mudo.

Desvende para nós o poeta Glauco Mattoso e suas paixões.
MATTOSO - Não posso. Um bruxo não revela os termos de seu pacto com o Demônio, ou com os demônios. Cabe ao leitor procurar tais indícios no meio de tantas perversões e perversidades que tematizo.

Luzdalva Silva Magi é poeta e professora, formada em Letras pelo Centro Universitário Fundação Santo André e autora de artigos na revista ‘Conhecimento Prático de Literatura''